A MARINHA GRANDE – ONTEM E HOJE
Por João Maurício
Nos meados dos anos sessenta do século passado, o Colégio de Porto de Mós era um bom estabelecimento de ensino. A vila era pacata com uma ruralidade bem vincada. O concelho era, como quase todos, conservador e dominado pelos senhores que admiravam Salazar.
Havia, contudo, um pequeno grupo de contestatários ligados às chamadas profissões liberais, que se reunia num café do centro da vila, cujo nome já não me recordo.
Porto de Mós, com o seu castelo altaneiro, via correr de modo doce o rio Lena a seus pés.
Vivia-se numa dependência de Leiria que já, nessa época, tinha um importante setor industrial ligado à produção de plásticos.
O diretor do Colégio era o Dr. Manuel Perpétua, um ribatejano que tinha passado por Coimbra. Austero e muito culto, licenciado em Histórico-Filosóficas. Pela visão que tinha da História Universal, dava para perceber que era homem de esquerda. Mesmo assim, era muito respeitado localmente. Tinha sido, anteriormente, proprietário do Colégio de Peniche. Veio a ser, após o 25 de Abril, o primeiro presidente da Câmara Municipal das Caldas da Rainha, de onde era natural a esposa.
Nunca me identifiquei com o Dr. Perpétua, mas aprendi muito com o seu saber. Embora não tenha provas concretas, apercebi-me que no Colégio, ainda que de forma escondida, funcionava esporadicamente a débil máquina oposicionista ao governo salazarista, em terras portomosenses. Naquele estabelecimento de ensino, a minha professora de Inglês foi a Dra. Júlia Guarda Ribeiro. Foi, depois, docente na Escola do Magistério Primário de Leiria. Há uns anos, chegou-me às mãos um livro seu “Mulheres da Marinha Grande – histórias de luta e de coragem”. Uma obra “dura”, onde se relata o papel extraordinário que as mulheres marinhenses tiveram na resistência ao salazarismo.
Folgo em saber que a Drª Júlia ainda está entre nós.
O professor de Moral era o pároco de Alqueidão da Serra: um homem bom e calmo. Convidou um grupo de alunos, entre os quais eu estava incluído, para o acompanharmos à Marinha Grande, onde iria mandar fazer uns bancos para a sua igreja. A um sábado, lá fomos por estradas tortuosas, percorrendo os vinte quilómetros que separavam as duas terras. Durante o percurso, o padre ia rezando e nós, é claro, tivemos que o acompanhar nas longas orações. De um modo repetitivo e pouco convictos, íamos balbuciando as rezas. Éramos quatro, todos da mesma idade. Só parámos de rezar, quando nos aproximámos da placa, onde estava escrito “Marinha Grande”. De súbito, o sacerdote disse de modo firme e seco “Vamos entrar numa terra de comunistas”. Por ser muito novo, tinha uma ideia muito “ténue” do significado da palavra “comunista”. Só mais tarde, quando comecei a ouvir as monocórdicas rádios clandestinas, me apercebi bem do significado pleno do termo.
Alguns dos alunos da minha turma eram marinhenses, filhos dos grandes industriais locais. Nunca os ouvi abordar, mesmo ao de leve, o tema. O único que já tinha alguma cultura política era o Luís Amado, que muito mais tarde foi Ministro dos Negócios Estrangeiros. Era a estrela da turma, com uma inteligência rara, sereno e com muito bom senso. Foi com ele que, por exemplo, aprendi muito sobre a guerra do Vietname que estava no auge, nessa época. Os meus colegas de turma foram médicos, professores e funcionários judiciais.
A Marinha grande era uma terra com um associativismo muito forte. Conheci alguns dos seus clubes na área desportiva: o Atlético Marinhense que fez agora cem anos, O Sport Lisboa e Marinha, O Industrial Desportivo Vieirense, O Sporting Marinhense, na época muito ligado ao hóquei em patins.
Voltei à Marinha Grande, nomeadamente para visitar o Museu do Vidro. Estive, há pouco tempo, na Praia da Vieira, Monte Real (que pertence ao concelho de Leiria), S. Pedro de Moel, Vieira de Leiria. Passei pelo Pinhal de Leiria que vai lentamente renascendo.
A Marinha Grande da revolta do 18 de Janeiro de 1934, de António Gregório (1908-1961), destacado dirigente do PC, e de Manuel Baridó (1913-1996), vidreiro e ativista sindical, já não existe. Os comunistas, há muito que perderam a autarquia, assim como o deputado por Leiria.
Na Marinha Grande já se vêm poucas bicicletas, como meio de transporte dos operários de outros tempos.
O setor vidreiro foi ultrapassado pelo setor dos moldes. Os operários mais humildes foram substituídos por gente mais qualificada. O mundo operário deu lugar a uma classe média mais forte. A Marinha Grande, como em todo o País, continua a ter problemas. A verdade é que a “ilha comunista” do distrito de Leiria desapareceu.
Há pessoas que, ainda não entenderam a nova realidade. A História é ela própria e as suas circunstâncias e, contra isso, não há volta a dar!
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