A VIDA DURA DE UM MÉDICO RURAL
Já a noite ia muito alta, quando o médico, naquele domingo chuvoso, foi chamado para uma urgência.
Estávamos no inverno de 1959.
O clínico, meio ensonado, partiu para um lugarejo isolado lá para os lados da Ramalhosa. Um pouco depois do Bairro da Figueira, teve de deixar o carro já cansado dos quilómetros feitos. Esperava-o um velhote, franzino, de barrete, que segurava, pela corda, um burro esquelético.
O médico, com ar cansado, pegou na maleta, vestiu um rudimentar oleado e lá seguiu, em cima do jumento. Um verdadeiro “João Semana”, com o chapéu de chuva aberto, que ela caía miudinha, mas persistente.
Pelos carreiros, que estrada era coisa que não havia, o burro seguia em marcha lenta.
Quase meia hora depois, chegaram ao destino. Os familiares do doente estavam à espera do clínico, com um candeeiro a petróleo, que a luz elétrica era ainda um sonho:
- Onde está o doente? – perguntou o médico, enquanto sacudia os pingos de chuva.
Uma mulher de meia idade, que vestia de preto, explicou que o doente estava no palheiro. O homem sentira-se mal e dado que ele se contorcia com dores, deixaram-no ficar ali mesmo, que a palha era aposento cómodo. Talvez fosse algum problema de coluna e, por isso, não lhe tinham tocado.
O médico viu os olhos do enfermo, apalpou-lhe o pulso e, de modo seco, pediu para o levarem para um sítio mais próprio.
Os homens da casa (dois filhos já quase na idade das sortes) e um vizinho, levaram o doente com jeito para o melhor quarto da casa.
Ficou deitado numa velha cama de ferro. Na parede, do lado da cabeceira, tinha um quadro com o Sagrado Coração de Jesus.
O médico apalpou, demoradamente o abdómen do homem, e disse dois vocábulos, arrastando a voz como bom alentejano que era: - “São cólicas!”
Escreveu a receita, arrumou a maleta e iniciou o caminho de regresso, acompanhado desta vez, também do rapazola, filho do enfermo.
Pelo caminho, foi-se cruzando com as pessoas que, a pé, iam para a missa das sete.
Deixou o rapaz à porta da farmácia e dirigiu-se a casa. Um homem de meia idade esperava, ansiosamente, pelo doutor.
Uma nova urgência, lá para os lados da «borda da serra». Era a vida dura de um médico rural.
Notas finais – o clínico referido era o Dr. Manuel António. Natural de Évora, foi funcionário administrativo da Câmara Municipal de Lisboa, cumpriu o serviço militar como sargento miliciano nos Açores. Frequentou a Faculdade de Medicina de Lisboa.
Em meados dos anos cinquenta do século passado, a Junta de Freguesia da Benedita colocou um anúncio no jornal “O Século”, na tentativa de encontrar um médico para prestar serviço à população local.
O Dr. Manuel António chegou à Benedita na camioneta dos Capristanos, com uma mala de cartão. Aí, trabalhou uma vida até que a morte o levou. Chegou a ser colega de trabalho de dois médicos ligados a Rio Maior: os Drs. Joaquim Guerra e Fernando Aguiar.
Manuel António era um alentejano castiço e, às vezes, pícaro. Tinha um enorme sentido de humor. Foi, durante muitos anos, o meu médico e era normal desabafar comigo, no seu consultório da Rua Heróis do Ultramar. Talvez, por ser uma pessoa muito frontal e impulsiva, foi, às vezes, incompreendido. O ser alentejano nunca saiu dentro de si, era, sem dúvida um castiço.
Foi dos últimos “João Semana” da nossa região, num tempo muito difícil, em que a medicina era algo artesanal. Contudo, havia uma relação mais próxima entre os clínicos e os doentes.
Na sua pessoa, curvo-me perante a memória desses homens que salvaram tantas vidas!
Para terminar, direi que a história que aqui vos deixo não é uma prosa surreal. Foi um episódio verdadeiro que me foi contado por alguém, hoje a chegar aos noventa anos, que a ele assistiu.
Por João Maurício
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