DOCE OUTONO
Esta época do ano traz-me sempre à memória os tempos da escola primária, nos finais dos anos cinquenta do século passado.
A lembrança dos colegas que já nos deixaram, a aventura de começar a aprender a vida dos nossos primeiros reis, as ardósias e os tinteiros que estavam implantados nas carteiras, o mapa das colónias e as linhas férreas que eram mais do que muitas. Era um tempo em que começávamos a soletrar o alfabeto da vida e do mundo.
Não é preciso saber de equinócios e solstícios para perceber que, lentamente, o clima se torna mais ameno. Nas cidades maiores, começamos a ver mãos enfarruscadas pelo carvão e pela cinza e o fumo e o cheiro das castanhas assadas. Este é o tempo das árvores deixarem cair as folhas que alcatifam os passeios das ruas. É o tempo dos marmelos e das compotas. O orvalho cai dos beirais e as cameleiras começam a florir. Os dias são mais curtos e o cheiro das lareiras, nas aldeias paira no ar. Depois do calor do verão, a maioria esmagadora das plantas entra em período de recolhimento. No início de novembro, recordamos os que já partiram e deixamos cair uma lágrima por eles. Nesta altura, na Foz do Arelho, terra adorada pelo poeta Camilo Pessanha, às vezes o pôr do sol tem uma magia e uma beleza rara.
Lembro-me de tanta, tanta coisa!
De um novembro frio passado na tropa, em Aveiro, já lá vai meio século. Nunca me vou esquecer da brisa marinha, dos dias de neblina matinal, dos dourados fins de tarde, do sol que vinha da Costa Nova. A luz, na ria, tinha uma claridade difícil de explicar. Na cidade, havia uma tranquilidade única. Tinha uma pequena elite conservadora, mas, ao mesmo tempo, avançada.
Ruy Belo, senhor de uma poesia, por vezes muito difícil, deixou-nos grandes retratos do outono, que demonstram uma sensibilidade rara do autor. Genial, mas muito pessimista. Deixo, aqui, alguns breves versos da sua poesia relativos à época. “A verde folhagem / dia a dia desbotando / É a chegada do Outono”. “Mas que sei eu das folhas de Outono / ao vento velozmente arremessadas”.
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Para muitos poetas, o outono é a ante câmara do Natal, símbolo de vida. Para Ruy Belo, o outono está associado ao fim. “Quantas vezes ainda verei eu cair / as pálidas leves folhas de Outono?”.
Mas todos nós os que cá vivemos, devemos ter orgulho na grandiosidade do poeta de S. João da Ribeira, uma das maiores figuras da poesia portuguesa do século XX.
Este não é um tempo de desejar o passado que já não volta, porque, como disse António Gedeão, “o mundo pula e avança”.
Não é sensato ser passadista ou saudosista. Temos é de saber que, «para chegarmos aqui, tivemos de passar por ali». Este texto está, isso sim, impregnado de nostalgia, penso que saudável.
Nos fins de outubro, as vinhas, já sem os seus frutos, têm tonalidades de uma beleza ímpar, como se tivessem sido pintadas por grandes pintores. São paletas de cores onde o amarelo escarlate domina.
Noutros tempos, o mundo não era tão complexo como hoje e as estações do ano eram bem definidas, terminavam de súbito e voltavam sempre no tempo certo. Todos éramos cúmplices da meteorologia, já que a aceitávamos como ela era.
É esta a época dos dióspiros e do “Pão por Deus”, das passas de uvas e do vinho novo.
Lembro-me do tempo em que muito poucas pessoas tinham televisão. Por isso, os domingos eram silenciosos. Nesses outonos, ficávamos “ao borralho” nas tardes enevoadas e macias, ouvindo os suspiros dos mais velhos a quem a vida já pesava. Iam soletrando monossílabos que convidavam à melancolia intemporal.
Só quem passou, como nós, temporadas num país onde o calor é uma constante todo o ano e a chuva é uma miragem e só aparece “quando o rei faz anos”, sabe dar valor ao nosso Outono: único e doce!
Por João Maurício
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