O DR. JOAQUIM GUERRA ERA UM VERDADEIRO JOÃO SEMANA
Por João Maurício
Ao lembrar-me do Dr. Guerra recordo-o como um verdadeiro João Semana, o médico rural imortalizado por Júlio Dinis.
Já passaram tantos anos que já nem me lembro quantos!
Naqueles longínquos tempos, para arranjar os dentes ia a Turquel ao consultório do “médico Guerra”. Era assim que o povo dizia. Esperava-se, às vezes, muito tempo. Geralmente, o clínico estava ausente. Tinha ido fazer um parto ou uma urgência. Lembro-me bem da velha máquina para perfurar os dentes. Era algo artesanal, do tempo em que não havia luz elétrica. O medo era grande, mas a simpatia do doutor era enorme. Ao contrário do que acontece atualmente, muitas vezes o dente estragado era arrancado.
O Dr. Guerra, homem na força da vida, de bata branca, começava a contar histórias e nunca mais acabava. Tudo ia parar ao desporto, especialmente ao futebol e ao hóquei em patins. E o dentista, de repente, dizia “se doer, levante o braço”. As dores apertavam, o braço estava no ar, mas o médico esquecia-se, tão “embalado” que estava no mundo desportivo. E as histórias de Coimbra sucediam-se .
- “E tu, miúdo, de que clube és?”
Nós já sabíamos a resposta a dar:
- “Da Académica, Senhor. Doutor”.
- “Então vou fazer-te um desconto”, respondia o clínico.
Nessas alturas, sempre que ia ao consultório, a alegria do médico era do tamanho da Serra dos Candeeiros, que se via ao fundo, através das janelas.
De súbito, enumerava os nomes dos jogadores da Briosa de várias gerações: Maló, Rocha, Crispim, Marques, Curado, Wilson, Toni, Lourenço, Vieira Nunes, Manuel António, Tibério Antunes e muitos mais.
O Dr. Guerra, poucos o sabem, escrevia muito bem. Tinha um estilo bem trabalhado. Por eu lhe ter reconhecido as qualidades, em 1994, num jornal regional, teve a simpatia de me dedicar um breve texto, onde, como que uma despedida, escreveu: «A minha voz se calará, porque já vou longe na idade».
O médico nasceu em 1911, na Quinta de Vale de Ventos, no sopé oeste da Serra dos Candeeiros. Estudou na Figueira da Foz e em Santarém. Os cinco anos do curso de Medicina foram passados em Coimbra. Jogou futebol e fez o serviço militar no Alentejo.
Cada consulta eram cinco escudos. Fez 5.370 partos. No início da carreira, andava pelos lugarejos, a cavalo emprestado pelo pai, porque não havia estradas. Mais tarde comprou uma bicicleta e, depois, um Opel que lhe custou sete contos. Em 1956, comprou outro Opel, na Auto- Industrial de Leiria. Tornou-se famoso o LH-23-61 que veio tantas vezes a Rio Maior, e já sabia o caminho, por isso “poderia ir sozinho”, como dizia o doutor.
Nos anos quarenta do século passado, abriu consultório na Benedita. E, em 1954, abriu outro em Rio Maior, na atual rua Dr. Francisco Barbosa. Foi o seu filho Manuel Pedro Guerra, também médico, que escreveu que o pai “de manhã estava no consultório de Turquel, após o almoço ia para a Benedita e ao fim da tarde, estava em Rio Maior”.
Fazia domicílios, numa área que ia de Évora de Alcobaça às Quebradas e da Cabeça Alta (Caldas da Rainha), até às Alcobertas.
O consultório de Rio Maior mudou mais tarde para a rua Serpa Pinto, nº 103 - 1º e, finalmente para a rua João de Deus, nº 25, onde se manteve mais de cinquenta anos.
O Dr. Guerra era muito imaginativo e, com a colaboração de um mecânico, inventou uma máquina de apanhar azeitona.
Já nos anos cinquenta do século passado, abriu um consultório em Alcobaça, tendo fechado o da Benedita. O de Rio Maior funcionava até às 23 horas e manteve-o aberto até à década de oitenta.
Foi fundador do Hóquei Clube de Turquel e presidente do Ginásio Clube de Alcobaça. Segundo o seu filho, na obra “Turquel e a Minha Família”, no dia 6 de Junho de 1984, o seu pai teve um grave acidente “tendo sido transportado para o Hospital de Rio Maior”. A 29 de Maio de 1994, o Hóquei Clube de Turquel organizou uma grande festa de homenagem, com descerramento de um busto junto ao pavilhão.
O Dr. Guerra escreveu dois livros: um sobre o hóquei em patins e um outro sobre a sua irmã Isabel.
Em 1999, com 87 anos frequentou um curso de Ortodôncia na Universidade Moderna. Morre com 95 anos. O seu funeral aconteceu a 31 de dezembro de 2006.
Tinha desaparecido um homem bom, um verdadeiro João Semana que Rio Maior conheceu tão bem.
O Dr. Guerra, pelo menos na década de quarenta do século passado, exerceu medicina num tempo muito difícil, em que as condições de trabalho eram muito precárias. Como escreveu o seu filho, “Era no tempo em que as seringas de vidro, as agulhas e ferros cirúrgicos se esterilizavam fervendo em água”. E foi o mesmo filho que escreveu “O meu Pai foi capaz de lutar por interesses que não os seus”.
Maior elogio não pode haver.
Calcorreou lugarejos, fez cirurgias sem o mínimo de condições, salvou tantas vidas, trabalhou muito e deixou um rasto de bondade naqueles que o conheceram.
O tempo em que exerceu medicina era muito diferente do de hoje. Por isso, é nosso dever recordar os velhos clínicos que tanto lutaram contra as doenças.
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